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Escândalos Urbanos (5)


Escândalos Urbanos (5)



Eles e elas falam sozinhos e andam sem destino pelo centro da megalópole. Sobrevivem graças ao álcool e aos restos jogados no lixo pela também cambaleante classe média. São os mendigos, a legião de miseráveis que aumenta dia após dia em São Paulo. Tornaram-se, inclusive, produtos de “exportação” porque são tangidos e trazidos, sob coação, de cidades do interior para São Paulo.



  O prefeito Kassab está muito “preocupado” com eles. A imagem de uma cidade “suja” é de responsabilidade dos mendigos. Não têm civismo, nem senso de estética urbana. Não querem trabalhar. Não frequentam a igreja aos domingos. Se as autoridades for investigá-los, descobrirá que são ateus, imorais, farrapos humanos. Precisam de uma “limpeza social”. Os mais ricos dos cidadãos chegam a pensar numa proposta “radical”: jogá-los em alto mar, junto com os presos. Uma parte dos bem situados ficaria, enfim, livres desse “lixo urbano”. Outra parte até deseja que eles elas permaneçam em São Paulo porque farão falta como alvo principal da repressão. Afinal de contas, onde e em que alvo serão utilizadas as balas? Como ficará a indústria armamentista?


Outro dia, um mendigo deitou-se e adormeceu na porta do prédio em que mora dona Lourdes. Fazia sol forte. Era um homem idoso. Sobre sua barba branca circulavam moscas e formigas...
Pensei rápido: é um ser humano, criatura de Deus, sua imagem e semelhança.É templo do Espírito Santo...
Nenhuma autoridade toma uma providência concreta para devolver a esse irmão a oportunidade de terminar seus dias em condições coerentes com a sua dignidade.
Ninguém ouve os seus gritos aparentemente desconexos. Só quem os escuta é o Absolutamente Outro que ouve os clamores do povo e se mobiliza para promover a sua libertação...


Ele - Javé - quer que ouçamos esses gritos. Chegou a enviar seu Filho, Jesus, para anunciar a vida plena para todos os seres humanos...
No entanto, na lógica da “ordem”, os mendigos representam um entulho, um câncer a ser removido de qualquer maneira, custe o que custar...


Registram-se, porém, gestos de profecia: um secretário municipal de uma grande cidade do interior paulista foi chamado recentemente, pelo prefeito, que lhe deu a seguinte ordem: “Numa dessas noites, providencie kombis e vãs. Recolha os mendigos e jogue-os no centro de São Paulo”. O secretário respondeu: ”Prefeito, eu não vou fazer isto. O meu cargo é seu. Pode nomear outro secretário...”.


Os gritos de tantos miseráveis ecoam pelas ruas sujas do centro paulistano. Juntos, esses gritos formam o coral que, um dia, cantará glórias ao Senhor, no Paraíso. Eles também nos precederão no Reino dos Céus. Mas a Palavra de Deus não deseja somente que esses homens e mulheres transfigurem-se diante do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Propõe,exige,recomenda e ordena que eles e elas possam também ressuscitar para uma vida digna aqui na Terra.


Dermi Azevedo é jornalista, cientísta político, articulador da Desmond Tutu e membro da Paróquia da Santíssima Trindade.