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Bobó de Camarão, Jaci Maraschin e o Fundamentalismo: Puxando Conversa na Quaresma


Reverendo Arthur Cavalcante Bobó de Camarão, Jaci Maraschin e o Fundamentalismo: Puxando Conversa na Quaresma


  *Reverendo Arthur Cavalcante


Para início de conversa


Nos últimos anos pude conviver um pouco com nosso querido teólogo Dr. Jaci Maraschin. No dia de minha posse como reitor na Paróquia da Santíssima Trindade (2005) eu tive o privilégio de encontrá-lo naquele momento tão importante de minha caminhada pastoral. Depois iríamos nos encontrar nas reuniões do CONAC (Comissão Nacional Anglicano Católica Romana) e por último, de forma um pouco mais intensa, nas reuniões da Comissão de Liturgia da IEAB. Muitos de nossos encontros se deram na residência do próprio Maraschin onde pude descobrir seu gosto pela arte culinária. Apreciei de algumas obras não teológicas, mas gastronômicas do eterno mestre. Desses encontros surgiu como retribuição de minha parte, um Bobó de Camarão preparado à moda nordestina. Esse prato leva alguns ingredientes como macaxeira (mandioca), leite de coco, camarão e temperos diversos (cominho, coentro, pimentão...). Para acompanhar essa Liturgia Gastronômica o próprio Maraschin nos serviu um bom vinho aguçando ainda mais o paladar.


Estávamos em quatro em torno da mesa no jantar memorável: Prof. Dr. Maraschin, Sr.ª Ana Dulce, Prof.Dr. David Morales e eu. Conversamos sobre coisas triviais, dos velhos “causos” da nossa igreja, gastronomia, vinhos, família, política internacional, América Latina, e claro, teologia.  Em certo momento de nossa conversa, ele nos mostrou o esboço de uma tradução que estava fazendo de um livro chamado Fundamentalism (2003) de um teólogo neozelandês. Maraschin falou sobre o conteúdo do livro dizendo que era interessante a forma como o autor abordava tema. E a nossa conversa não se estendeu muito pelo avançar das horas. Estávamos no fim do outono de 2009...


De frente com o Fundamentalismo


Fui no mês de março ao lançamento do livro do Reverendo Carlos Calvani intitulado Teologia e Arte em um espaço de debates chamado Theologando. Um verdadeiro oásis do protestantismo no exótico jardim da teologia cristã. Na verdade esse espaço é um presente de uma editora chamada Fonte Editorial que dispõem de seu auditório para os escritores palestrarem sobre as suas obras lançadas. Diante de tantas bobagens oferecidas no mercado religioso, essa editora apresenta livros inteligentes, profundos, e claro, profundamente protestantes. Aqui me refiro ao termo protestante, no sentido de alternativo e revolucionário de fazer teologia. Na vitrine da livraria encontrei o último livro traduzido pelo Maraschin do qual me referia no início dessa conversa, mas agora com o título em português chamado Fundamentalismo. Não tive dúvidas em levar aquela pequena obra, na qual nosso teólogo tupiniquim antes de morrer, se debruçou e gastou suas energias para traduzir. Um presente, ou diria melhor, um sinal para nós cristãos anglicanos nessa difícil fase que atravessamos na Comunhão Anglicana. Chegamos praticamente ao fim do verão de 2010...


Fundamentalismo de Geering


Fundamentalismo Lloyd GeeringLloyd Geering, 82 anos, tem em seu currículo um Doutorado pela Universidade de Otago, um Mestrado em Matemática, atua como professor de Antigo Testamento e dos Estudos da Religião, além de ser pastor da Igreja Presbiteriana de Aotearoa, Nova Zelândia. No Brasil tivemos o privilégio de ter uma de suas obras traduzidas para o português, intitulada Deus em um Mundo Novo (God in the New World-1968).



Geering trata do fundamentalismo religioso nas três grandes Religiões do Livro: Judaísmo, Islamismo e Cristianismo. Não seria de se espantar sua atenção sobre esse tema. Claro que ele escreve a partir dos acontecimentos monstruosos gerados do “Atentado do 11/09” atribuído a Al Qaeda de Osama Bin Laden. Além disso, pesa em sua escrita um acontecimento no passado que o atingiu diretamente como ministro presbiteriano. Em 1967, Gerring foi alvo de denuncias por ensino de heresia, por parte de integrantes de sua própria Igreja. Dois dos seus escritos, o primeiro chamado A Ressurreição de Jesus e outro A Imortalidade da Alma desencadearam perseguições de religiosos fanáticos. Depois de todo o processo eclesiástico imposto a ele, conseguiu absolvição de todas as acusações de heresia.


Em sua recente obra, Geering apela para um estudo paralelo sobre o fundamentalismo nas três religiões, buscando pontos convergentes e divergentes. Dentro do cristianismo, nosso teólogo identifica as origens da corrente fundamentalista com o lançamento da série The Fundamentals, no início do século XX nos Estados Unidos. A série de folhetos sobre as “verdades eternas” é uma reação (fundamentalista) contra as formas de interpretação da Bíblia baseadas método histórico crítico e do movimento que buscava uma resposta concreta/evangélica aos desafios do século XIX. Nesse sentido os grupos religiosos insistiam na leitura literal dos textos bíblicos e rejeitavam os métodos liberais de interpretação. Geering (2009, p.39/46) vai ao âmago da questão quando avalia a atitude desses grupos diante do texto bíblico


 


Lloyd Geering FundamentalismoA novidade do fundamentalismo não é o lugar de honra que dá às santas escrituras, mas a maneira como as interpreta. Os fundamentalistas tratam as escrituras como o ponto de partida da fé, quando, na verdade, é seu produto: as escrituras sagradas só passaram a ter autoridade depois do estabelecimento da tradição [...] os fundamentalistas não foram nem são consistentemente literalistas bíblicos. Só tomam a Bíblia ao pé da letra quando lhes convém.    


 


Pensando o presente


Comunhão AnglicanaAssistimos estarrecidos como o fundamentalismo tem avançado dentro das Igrejas de Tradição Reformada que foram proféticas e relevantes em sua época. Nossos fundamentalistas anglicanos (eles preferem se intitular de ortodoxos) apostam que a Salvação da Comunhão Anglicana está nessa leitura literal das Escrituras Sagradas e na expulsão ou na domesticação eclesiástica de qualquer ala teológica/pastoral divergente. Nesse sentido caem no erro de não responderem com o Evangelho para os desafios de nosso tempo. Muitos líderes preferem conduzir o Povo pela vereda fundamentalista ao invés de caminhos alternativos tal como preferiu Jesus Cristo conduzir seus discípulos perante o sistema religioso de seu tempo.


Talvez Geering tenha razão ao apontar que o próprio fundamentalismo está se tornando o inimigo da verdadeira religião.  A Bíblia mal empregada torna-se uma péssima aliada para os problemas de hoje enfrentados pelos pastores no cuidado do Rebanho. O tão propagado “crescimento evangélico” dentro do anglicanismo brasileiro caracteriza muito mais um inchaço de grupos sem identidade com nossa igreja. Muitos entram pelas portas dos templos, mas um grande grupo também se retira pela falta de consistência teológica e pastoral. Erramos ao enxergar esses grupos como um bloco monolítico, sem problemas, sem divergências e politicamente coeso. Na verdade os fundamentalistas são diversos, divergem em suas crenças e têm em comum “[...] a convicção de que possuem o conhecimento absoluto da verdade da qual se tornam guardiões divinamente ordenados” (p.41). Além disso, não podemos nos esquecer que a disputa de poder dentro do bloco fundamentalista já ocorreu no início da coalizão e na expulsão de grupos divergentes ou intitulados de “liberais” (uma espécie de purificação religiosa na qual elimina o elemento discordante). Nas relações pastorais fundamentalistas vale mais manter as aparências de uma suposta ortodoxia do que cuidar dos fiéis em suas necessidades. Diante do desastre pastoral esse líderes prestarão contas diante de Deus por não saberem cuidar do Rebanho.


Devemos avançar e insistir nos caminhos alternativos de fazer teologia nesses dias. Não devemos cair em tentação diante das igrejas de resultado onde o pragmatismo e a falta de densidade bíblica reina despoticamente.   O Evangelho deve ser pregado com consistência sempre desafiando os ouvintes na transformação de suas vidas e da sociedade, agregando assim os valores ensinados por Jesus de Nazaré.


 Nessa sugestão pastoral para o tempo de Quaresma desejo uma boa leitura a todos vocês.


*Reverendo Arthur Cavalcante: é Reitor da Paróquia da Santíssima Trindade. Email arthur@trindade.org



Fundamentalismo Lloyd GeeringLivro: Fundamentalismo


Escritor: Lloyd Geering


São Paulo, 2009


p.106


Editora: Fonte Editorial


Apresentação à Edição Brasileira: Pastor Ricardo Goldin (Pastor da Assembléia de Deus Betesda)


Prefácio: Ronaldo Cavalcante


Tradutor: Jaci Maraschin