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O Episódio de Tomé

O Episódio de Tomé


Segundo Domingo de Páscoa


Textos Bíblicos: Atos 5:12-16; Apocalipse 1: 9-13, 17-19; Salmo 118:19-24;  João 20:19-31.


 “Pode-se vencer a morte? Segundo a lenda grega, as sombras transportadas por Caronte iam para o reino de Hades e de Perséfone, mundo subterrâneo. Orfeu, o músico genial, que teria vivido no século VI a.C, tendo herdado os dons de sua mãe, a musa Calíope, e de seu pai, Apolo, penetrou no lugar da eterna morada e arrebatou Eurídice da morte, e na primeira forma de lenda, o casal triunfou da prova que lhe fora imposta. Mas, segundo Virgílio e Ovídio, Orfeu, no caminho de volta, esqueceu-se da proibição, voltou-se para admirar Eurídice, e esta desapareceu para sempre; a morte saiu vitoriosa e Orfeu frustrado. Assim, o orfismo não pode reivindicar poder triunfal sobre o ciclo da vida: ‘até’ (dito meu) os deuses se inclinam diante da morte. Mas, com o cristianismo, Jesus transcende a morte.” Sentido Oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? Jean-Pierre Bayard.


 Reverendo Arthur Cavalcante*


Reverendo Arthur CavalcanteO tema da Ressurreição não é uma novidade para o povo judeu, pois já se ouviam falar de ressuscitações de pessoas que dão continuidade em vida terrena. Contudo para o povo “em nenhum lugar de sua literatura acha-se algo de comparável com a ressurreição de Jesus” (J. Jeremias- Teologia do Novo Testamento- pg 466). A mensagem da Páscoa transcende a ressuscitação de um cadáver que não traz relevância e nem desafia a humanidade. Sim, cremos na Ressurreição e daí? O que muda em nossas vidas e da sociedade?


Estamos diante de um texto bíblico que reflete o pensamento de uma comunidade cristã sobre a Ressurreição de Jesus Cristo. Já sabemos que cada evangelista representa uma comunidade de fiéis que de sua forma tem sua compreensão particular, mas não sectária, de Jesus Cristo. A Ressurreição de Jesus é contada com detalhes particulares e no Evangelho de João com o uso de tantos sinais enriquecem ainda mais a mensagem das Boas Novas da Salvação.


No domingo passado ouvimos o texto no qual as mulheres se deparam com o túmulo vazio. O texto de hoje nos fala de uma manifestação do Cristo diante dos Apóstolos. O testemunho das mulheres não foi suficiente para os Apóstolos (homens) vencerem a incredulidade, pois era “uma conversa de mulheres”. Hoje, ouvimos o relato de uma manifestação quase particular ao discípulo Tomé, aquele que ficou associado com uma expressão bastante popular: “Só acredito vendo!”.



Será de fato que precisamos em nossa experiência de fé de termos provas ou sinais constantes do amor de Deus? Será que é tão importante para nossa espiritualidade uma manifestação espetacular do divino para nos deixar mais confiantes em Deus?


Podemos dividir o texto de hoje em três partes para entendermos a profundidade da mensagem do Evangelho de João.


1-        A primeira se encontra entre os versículos 19 ao 23. Cristo se apresenta ou se deixa conhecer aos discípulos. Havia entre os discípulos uma sensação de fracasso com toda aquela estória de seguir o Jesus Nazareno e de tê-lo como Messias. Sim! Uma sensação de fracasso mesmo, pois tudo aquilo havia terminado numa cruz. Três dias depois da crucificação os discípulos se fecharam em uma casa. Era um sinal indicando o isolamento ou medo de serem reconhecidos pelos detentores do poder político e religioso que condenou a morte de Jesus: “Ora se fizeram isso com o Mestre qual seria do destino dos discípulos?” O mesmo poderia acontecer com eles. Há um clima de ódio, terror, violência e morte. Contudo, naquele dia, Jesus se apresenta diante dos seus discípulos.


É interessante notar que “[...] João não afirma que Jesus atravessou as portas trancadas. A referência às portas trancadas aponta para o fato da ressurreição dos mortos não se inserir nas leis humanas de espaço-tempo-mundo. A ressurreição diz respeito à realidade de Deus e não às leis humanas” Wilhelm Wachholz. Jesus se põe no meio daquele grupo frágil e por duas vezes declara: “A paz esteja convosco”. Shalom! Palavra hebraica carregada de significados para o povo judeu e não quer dizer apenas a ausência de violência. Shalom é saúde, bem estar, segurança, felicidade, harmonia conosco e com as relações sociais equilibradas. Assim Jesus lembra aos discípulos com uma palavra que sua mensagem não morreu.



Agora os discípulos são enviados para saírem daquela casa rumo ao mundo. Como o Pai enviou o Filho ao mundo, os discípulos também são enviados cheios do Espírito Santo por Jesus Cristo. São enviados para reconciliação, para o perdão. Não há lugar para mais violência ou revanche. Shalom! É possível responder dessa forma as formas variadas de violência e de agressão que sofremos todos os dias? É possível responder aos sinais de morte sem usar também da violência? A Páscoa nos lembra que a morte ainda não tem a última palavra.


2-        A segunda parte entre os versículos 24 ao 28 faz referência ao episódio de Tomé.


Parece que um dos discípulos não está presente naquela manifestação do divino. Não podemos nos esquecer que muitos ficaram desiludidos com o final recebido pelo Messias e até compreensível a reação de Tomé de buscar o isolamento. Já experimentamos a morte alguma vez? Claro que não falo da morte física ou do corpo.  A morte quando deparamos com a frustração de algo que foi esperado, planejado e vivido e de repente não poderá mais prosseguir. Tomé também vivenciava um momento de morte ao ver os seus sonhos acabados.  



Tomé não está satisfeito com as histórias que lhes chegam aos ouvidos. Ele ignora a voz das mulheres e dos discípulos. Ele deseja pessoalmente se encontrar com o mestre. Oito dias se passaram e resolve deixar o isolamento para permanecer agora com os outros discípulos. O que leva Tomé de volta ao grupo de discípulos? Certamente aquela estória que foi contada pelos seus colegas influenciou nessa decisão de Tomé. O isolamento nem sempre é a melhor forma para se enfrentar as crises. Podemos superar muitas dificuldades quando juntamos forças com outras pessoas. Inclusive, até alguns sinais preciosos só podem ser vistos em comunidade. Então, Jesus mais uma vez entra naquela casa e proclama o Shalom. Jesus expõe para Tomé as marcas da crucificação. Quando Tomé toca nas feridas do Cristo, ele faz a ponte do passado com o agora.


Tomé representa o tipo que duvida, mas ao se deparar com o Cristo ressuscitado diz: “Meus Senhor e meu Deus”. Ele foi muito além dos seus colegas. Para ele não basta ser tomado de um sentimento de alegria, mas de uma confissão de fé. Uma religiosidade que só se alicerça nos sentimentos não basta é preciso que a crença desafie a questões que vão além das nossas necessidades básicas.


3-        A última parte está entre os versículos 30 ao 31. A Ressurreição ou a Páscoa repercute além de uma data comemorativa. As aparições de Jesus certamente persistiram e assombraram por anos. Com o passar dos tempos como indica o Livro de Atos dos Apóstolos as aparições foram restringidas por 40 dias, até o momento glorioso da Ascensão. No calendário litúrgico das Igrejas, a Páscoa irá seguir um período de algumas semanas. As Igrejas ensinam a magnitude do acontecimento em sua liturgia quando afirmam que cada Domingo representa na verdade uma Páscoa. 



Os sinais apresentados por João em seu evangelho são apenas uma fração das maravilhas de Deus. Isso aponta que há uma riqueza incalculável na mensagem de Jesus Cristo.


Não fomos testemunhas da Ressurreição de Jesus Cristo. Apenas cremos sem termos presenciado o milagre. Apoiamos nossa fé por causa do testemunho de terceiros, pessoas ou comunidades que permaneceram vivas e unidas após a morte trágica do seu Mestre. Resumindo: nossa espiritualidade não deve satisfazer-se tão somente com a manifestação intimista do sagrado, mas buscar o testemunho comunitário da nossa fé no Jesus Ressuscitado. “Bem aventurados os que não viram e, contudo creram”. Deus nos abençoe, Amém!


 * Reverendo Arthur Cavalcante é reitor da Paróquia da Santíssima Trindade. Email arthur@trindade.org